segunda-feira, 25 de março de 2013

Herança


Porque em todas as palavras de amor há enfado, em lugar de cheiro suave. O coração tropeça, levanta-se pela manhã e segue a bebedice. E alegro-me por causa dele, porei o meu temor nos corações dos homens avacalhados. E, recebendo eu amores, murmurarei contra os céus, fazendo injustiça, comendo a carne dos santos. E aquele que jurar por amor, isso nada é, mas aquele que jurar pela carne, dará de comer aos seus caprichos. Depois, em casa, conseguirás amar por inteiro, quando por volta das doze, tuas mãos estiverem trabalhando, para que a vida escorra entre tuas pernas. E, tomando-a nos teus braços, a açoitará, cuspirá e matará. Esta é a herança dos que dormem ao invés de amar.

segunda-feira, 18 de março de 2013

Quando fores dormir


Quando fores dormir, lembra-te dos dias em que te segurei. E amanhã terás pão e água, herdarás a palavra, atenta para os teus passos. Lembra-te dos beijos que cresceram em entendimento, pequenos e desprezados, mas livres e puros dos corações impiedosos. Os teus berros, as tuas astúcias, acima de todas as perturbações. Lembra-te do meu aniversário, das lembranças abreviadas. Digo, porém, os afastamentos, não os teus, mas os dos outros. Lembra-te também das muriçocas sendo de novo geradas, debaixo das cobertas, pelo ciúme que se estende entre um gole de café e um maço de cigarro. Mas quero lembrar-te, como a quem já uma vez lembrei, que, ao amar-te, estarei passeando no inverno, para que me acompanheis aonde quer que eu for.

domingo, 10 de março de 2013

Bike - O Conto


I

E lá vinha ele outra vez, montado numa bicicleta. Ela já o esperava: olhava-o fixamente da janela, sem nem por um minuto desviar o olhar; saberia dizer se aquele dia seria agitado. Os dois pareciam estar conectados com a noite. Ambos os olhos arderam, quando o véu da noite rasgou o clarão das estrelas, junto com a lua e todos os astros que orbitaram a favor de mais uma eventualidade. E um simples aceno a fez mulher. O coração saltitando. O suor. A tremedeira nas pernas. O seu amado a esperava lá embaixo, com o que mais tinha de valioso: uma bicicleta. Nada de jantar, só um passeio de bicicleta. Talvez o bilhete para o desconhecido. Talvez não. Era só um passeio de bicicleta.

A noite muito fria e suculenta, o vento parecia estar embalando mais um caso de amor. Contudo, a menina não hesitou. Vestiu-se de pano de saco, com sua boina amassada, empoeirada por viver despreocupada, jogada em algum gaveteiro velho; e desceu as escadas, ao encontro de seu jovem rapaz. Um jovem forte, que a alimentava de palavras nesses dois anos de pura adrenalina.

Com um sorriso malicioso, ele pôs a bicicleta no chão e a abraçou. Nossa, que espetáculo! Um abraço no meio da noite, numa rua despovoada. Encostou seus dedos em sua nuca, ela o fez de despercebido. Depois, as línguas encontraram-se nervosas, doidas para uma troca de salivas. E o rapaz, com dedos largos e muito brancos, acariciou o doce rosto da menina, que agora permanecera de pé, pronta para o passeio.

Luzes. Multidões. Agitação. Correria. Isolação. As mãos dadas protegiam qualquer movimento extravagante. Os dois não se importavam, estavam suando. E o contraste de seus olhos era o portal para os sentimentos mais desconhecidos deste mundo. Porque os olhos conversam.

A bicicleta, a peça fundamental para o rodeio. O rapaz foi gentil, carregou a moça. Agora força nos pés. Enquanto os céus se abriam, mais um beijo era correspondido. Logo logo estariam na casa de seus avós.

E foram-se a passear pela noite. As cores já estavam por vir.