sábado, 29 de outubro de 2011

Em um mundo só meu



Nem todo mundo tem cheiro de balinha de hortelã, não é? Nem todo mundo é adocicado! Aqui, onde vivo, sinto-me bem. Essa gente toda deveria ser menos amatutada; a vida é demente. Os que transpiram são uns sujeitos animados e merecem lembrancinhas; vivem e comem bem. Em um mundo só meu, juntariam-se ricos e favelados, comeriam do mesmo pão, beberiam do mesmo refresco; alojariam-se em cada canto da cidade, no chão da minha cidade; e não tomariam banho, poupariam água. Nem todo mundo carece de um amor, nem todo mundo mendiga por um amor. Uns carecem só de um beijo, outros de um abraço; alguns veneram o sexo, o recriam. Ora, nem todo mundo possui um cartão de crédito...


Em um mundo só meu, seríamos revendedores autorizados de corações; distribuidores de entranhas.
(grifo meu)

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Quer um cigarro?


Está chovendo, Dona Maria! Quer um cigarro? Senta aí e fuma comigo! Vamos nos aquecer um pouquinho! Anime-se, Dona Maria! Temos um só cigarro para nos afoguear a garganta; abjuração das heresias. Não me peça mais que um, você está velhinha, não conseguirá deglutir essa fumaceira toda! Acenda logo, Dona Maria! Não se preocupe com a chuva, não arrenegue as coisas do Criador, só acabe de fumar o cigarrinho e o passe para mim. Sente-se bem? Que suavidade, não? Farejando os dedos, por quê? Não sente-se banhada? Acabamos de descobrir uma nova fragrância; deixemos os nossos parfurms de lado! Está tossindo? Dona Maria, não está indo ao médico? Quando ficamos um pouco velho, além dos cabelos brancos e da pele enrugada, não sei quem nos traz tantas indisposições. Eu fumo a um ano, mas às vezes, quando sinto-me distanciado dos bichos. Parou de chover, Dona Maria, vá pra casa! Eu vou ficar por aqui, sinto-me lerdo. 

Está uma soalheira danada, Dona Maria! Quer um cigarro? Senta aí e fuma comigo! Dona Maria?

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Ema


Em todos os lugares que iam-se, Ema estava lá. Nos covis, nas esquinas, nos becos, nas dobras, nos milhares de banquinhos de praça em concreto, espalhados pela redondeza da cidade. A garota era esfomeada. Cabelos secos, tingidos de um vermelho que lembrava-me pitanga; olhos verdes, raros de se encontrar em uma menina dessas qualquer. E o que mais me chamou atenção foram suas unhas, cada uma pintada de uma cor diferente: havia o azul, o amarelo, o laranja, o preto e o cinza. Diziam por aí que ela tinha quinze, mas confirmou-me ter vinte e três e três meses. Morava só, em um vão enroupado de pôsteres, desses que se veem em filmes de terror. Acordava às quatro da manhã, sentava-se no chão, bebia um gole d'água barrenta, triturava algum pão duro e velho, vestia-se e estava de bem com a vida. Todos os dias era assim, de domingo a domingo. Ao menos sentia-se melhor do que eu, nos olhamos discretamente. Depois do ritual, Ema direcionava-se para uma de suas ruas, não tinha saciado seu apetite de forma saudável, não tinha enchido a pança totalmente. Corria, porque se perdesse alguns minutos, poderia voltar esganada, ainda com fome. Exatamente às cinco e meia da manhã, havia uma negociação lá fora, a burguesia entrava em festa: uns eram desengonçados, de pernas tortas, barrigas arredondadas, dentes apodrecidos e outros até que eram engraçados, perfumados, com encanto e dinheiro. Ema disse-me uma vez que sentia uma fome voraz, mas controlável, por os desengonçados: os que se iludem rapidamente, os que nos oferecem bebidas; os que adormecem feito princesas, sob efeito de comprimidos. Posta ali de pé, pacientemente, a infeliz esperava por qualquer um. E era de se estranhar a venda da genitália pela manhã: as avenidas faziam um frio danado, poucos veículos circulavam por ali. De vez em quando, paravam alguns carros, na maioria das vezes bicicletas, caminhões, charretes, e ainda tinham aqueles que vinham a pé, só com o trocadinho no bolso. Ema era moça vivida, moça de truques, moça de máfias. Suas curvas custavam quinze, eram quase de graça. Noutras vezes, custaram dezessete, vinte, trinta e cinco, e quando eram dias de bençãos, custavam quase cinquenta. Não cobrava por hora, cobrava até onde estivesse afim. Era só um aperto de mão e as coisas estavam resolvidas, não precisava assinar nada. Não satisfazia-se com outras garotas, sentia-se acanhada em ter que beijá-las, em ter que abusar da sua própria feminilidade. Quando umas ofereciam um pouco mais do que os homens, ela não pensava duas vezes. E neste rebuliço todo, via-se, sentia-se e fazia-se de tudo. E teve vezes em que Ema vendeu-se por alimentos, por cigarros, goles de um bom vinho, por alguns pôsteres, por alguns cochilos em residências alheias, por centavos de crianças que estavam na puberdade, até mesmo por nada. A vendedora fazia questão de aventurar-se com homens da metrópole; os que desembolsavam um pouco mais, os que gozavam da ruiva enquanto arruinavam-se. Não importava-se com preservativos, tinha sorte de sobra. E só assim teria mais água e pão, mais solidariedade. Enganava a si mesmo e a seu coraçãozinho execrado, faminto de amor, não de paixão. Mas, de que lhe adianta o amor, se o amor não lhe traz nenhum vintém?

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Em qualquer outro corredor



Quando o vi, já era o mesmo: malandro, com os pés enfiados no chão. Deixei os costumes de lado, já tragava um cigarro de leve, somente para agasalhar o pulmão. Vasculhava a casa, escancarava as janelas, eu o sentia em qualquer brecha, nos desvios. Quando o vi, um beijo parecia-me hortelã, suas mãos arrancavam-me os cabelos, fio a fio. Acordávamos às seis, a caçoada lá fora: inclinavam-se as cabeças, os rostos franzidos, todos sobre nós. Quando o vi, aprendi a descer as escadas apressadamente, mas ainda com os pés enfiados no chão. Ainda o vejo, já cansei de o ver, já não aturo olhares. Olhar esbraseado, olhar incerto, olhar de macho. Entranhas afeminadas. E perguntam-me quem é o sujeito de quem tanto escrevo...


Só um segundo...






Tive que descer as escadas.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Um "eu te amo"


Um "eu te amo" tem que ser esmiuçado. Um "eu te amo" é belo, mesmo quando se diz com pouco amor. Os sentidos entram na folia da conturbação da vida. E os que se prendem por não amar são uns débeis, são uns esquisitos; afeminados por pensarem que o amor é coisa de mulher. Um "eu te amo" não cita quem quer, vai lá e reside no teu coração, na tua alma. Um "eu te amo" é válido para qualquer ser, qualquer animal; para os que possuem riqueza, para os que andam descalços, para os sábios, para os abestalhados; para os que distorcem o fluxo da vida. Um "eu te amo" não tem dono; é de graça, não faz questão de um centavo teu. Um "eu te amo" é vira-lata, é vagabundo; te espera em qualquer esquina, caminha contigo sem contar as horas. Um "eu te amo" é assim: "beijo, me liga!"; é quando alguém nos beija, é quando alguém quer ouvir a nossa voz por mais uma vez. Um "eu te amo" nos abriga, como uma música. Mas, um "eu te amo" também nos aborrece; nos alfineta, nos assassina; nos ressuscita. E é por essas e outras que dedico-me ao amor, que tenho fome de amar!

"O amor é feito o primeiro gole de um vinho: você regurgita de primeira e esvazia cinco garrafas na segunda."
(grifo meu)

sábado, 15 de outubro de 2011

Cisma


O que é a morte? Meus caros amigos cientistas e estudiosos não conseguiram definí-la por inteiro. Sempre falta algo, até nos dicionários que encontrei jogados aqui em casa. O que é morrer? Morrer? Morrer e ir aonde? Ou melhor, morrer e ir pra onde? Quanto tempo se leva até tudo se tornar mais árduo? Se morrer for bom, que os defuntos os digam! Tantos já se foram, tantos ainda estão aqui. Ouvi dizer que morrer é a única certeza que temos desta vida. Mas, e a vida eterna? É pós-morte? Às vezes, sinto-me incapaz de entender coisas tão claras. Então, te pergunto mais uma vez: o que é a morte? Nossa alma padece por aí quando morremos? E aqueles que nem alma têm? E aqueles que não sentem nada? Pra onde vão? Pra onde vão as sementes ruins da Terra? E os covardes sem amor, sem vontade de amar? E os que são feito eu? E os que sentem o que eu sinto? Não valem nada? Vejo muitos que morrem sem merecer, vejo muitos que sofrem sem merecer. Por que não morrem os que praticam injustiça? Por que não morrem os que estão contra Deus? Dá-se outra chance, e mais outra, e mais outra, até que não se reste mais nada, nada mesmo. Nada. Não se preocupe, você vai morrer um dia. Não terei a chance de te encontrar depois de morrer, ficarei sem saber o que se passa do mesmo jeito. Também não quero morrer agora, preciso abusar da vida. Eu sou um sujeito legal. Até agora nunca fiz uma boa ação, mas ainda sou um sujeito legal. Ainda quero juntar meus trapos dentro de uma mochila e sair por aí afora, quero conhecer o mundo. E nada mais, mais ninguém. Imagino-me morrendo antes dos sessenta, não desejo ultrapassar o tempo. Não quero morrer um velho nojento incapaz de subir algumas escadas, de fumar um cigarro, de ver ao longe; de subir num ônibus sem assistência, de ingerir bastante sal, bastante açúcar. E quem determina as coisas? Quem tem o poder? Deus! Sabe, Deus tá de mal comigo, estamos brigados. Estou sempre fazendo travessuras. Seria muito pedir para morrer? E que seja tudo escuro após a morte, que as coisas não se separem, que se acabem ali mesmo. Que não haja inferno ou qualquer outra coisa que me deixe pior do que estou. Porque eu não tenho medo da morte. É que ainda me falta coragem e disposição para tal questão...


Então, fiz uma micro lista das cinco coisas que apreciarei antes de morrer, antes dos meus sessenta:


1) as luzes do polar;
2) um natal em Nova Iorque, acobertado de neve;
3) um fim de semana nas florestas mais belas desse mundo;
4) o apocalipse de Seu João;
5) o amor.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Das coisas que eu sinto falta


Sinto falta do ar fresco lá fora. E aqui dentro também. Sinto falta do sorveteiro que passava às quarto da tarde gritando "olha o sorvete! olha o sorvete!", e a meninada voraz, quase deixando a carrocinha de pernas pro ar. Sinto falta do parquinho atrás do meu quintal, o verdinho que sobrara do mundo. Tínhamos acesso livre à diversão, à coisas que costumávamos fazer e dizer quando meninos. Sinto falta daquele velho sofá onde espreguiçava-me, onde não existia dor alguma; onde as horas eram regulares. Os meus pés repousavam, mas já prontos para mais uma andada naquele chão esquentado por ruas afora, sem direção. Sinto falta da chuva que molhava meu telhado velho e furado, despertando-me dos meus piores pesadelos, com gotinhas congelantes que me enfraqueciam os ossos. Sinto falta dos dias em que estudava, dos dias em que a matemática me enlouquecia; das minhas professoras velhinhas e sábias, aquelas que descarregavam total confiança em mim e diziam "vai! vai em frente que você tem jeito!". Sinto falta também dos amigos de infância, dos quais me abraçavam apertado na hora da fome, na hora de compartilharmos as lancheiras - os do colégio. Já indo pro lado familiar, sinto falta de um diálogo justo entre eu e meu querido pai. Sinto falta de estarmos juntos em datas comemorativas ou não, em lugares enjoados ou não. Eu sinto falta do que éramos antes de tudo ficar às avessas. E sinto falta dos meus cachorrinhos de estimação: meus irmãos. Cada um se foi de um jeito diferente. Mas foram embora de qualquer jeito. Eram tempos bons. Eram tempos incomparáveis. E ainda tem aquela imensa falta de um amor, de um beijo de amor, de um momento de amor. Aquela falta de uma saída ao cinema de mãos dadas, observando cada gesto, conservando cada palavra; aquele amor à cobertas, aquele calor entre dois corpos, os gemidos, a maturidade em ação. Sinto falta de muitas coisas, eu sei. Se o tempo rastejasse, juro que relataria todas as outras coisas que sinto falta. Então, acho que até aqui é o suficiente. Desisti de forçar a visão para tentar ver as coisas do meu jeito, do meu único jeito. Estou precisando de um oculista. É urgente! Sinto falta de viver.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Dois velhinos



Eram dois velhinhos. Um caindo aos pedaços: olhar morto, barba crescida, dentes amarelados, pele enrugada e descaída. Já não conseguia subir escadas nem torcer o pescoço. Tudo doía. Até viver... O outro sempre animado, sorrindo, saudável, de mãos pra o alto, de mãos para o mundo. Não sofria de cegueira nem se importava com sua aparência; não se olhava no espelho com frequência; não tinha nada a temer. Eram da mesma idade, eram do mesmo bairro, residiam no mesmo espaço. Mas não sentiam as mesmas coisas. Um era alto, o outro baixo. Um magro, outro gordo. Um era calvo, o outro tinha cabelo de sobra. Um era nojento, o outro se banhava duas vezes ao dia. Um cantava, o outro era tranquilo; quase não falava. Em um dia qualquer, sentado em um desses bancos de praça por aí, com um cigarro aceso na mão, o velhinho tentava entender a vida, como todos nós. Observava as crianças brincando, os interesses do ser humano. Então, tudo voltava a ser como era antes: fácil. Por sorte, o outro velho sentou-se no mesmo banco, ao lado de sua sombra. "Sabe, essa vida é medonha pra me deixar doido. Tô ficando velho e não soube viver o bastante... Tenho medo de morrer agora, aqui." "Deixa de conversa, meu senhor! Tá tentando usar a morte como desculpa para os problemas? Nunca se sabe quando vai morrer..." "Gostaria de saber... Só assim saberia controlar a vida." "Não!" "Tô aqui morrendo aos poucos... Olha pra mim! O que você tá vendo? Só um velho feio, sem dente, sem amor. Um velho feio!" "Cada um tem sua beleza própria. Não precisamos nos questionar sobre isso. É banal." "Você diz isso porque tá aí lindão e gostosão, perfumado, dando uma de sabichão." "Meu caro velho, a gente não escolhe onde viver. A vida nos presenteia do jeito que ela quer." "Quer dizer que posso mudar?" "Claro! Ainda vives! Enquanto vivemos, escolhemos o que queremos e pronto! Mas cuidado com as consequências..." "Mas sou pobre." "Eu também sou pobre. Não possuo riqueza alguma nessa Terra. Sou pobre e humilde." "Ah,  fala sério, velho! Você não tem cara de gente pobre." "Nem tudo que se parece é." O velho não respondeu mais nada. Levantou-se e foi embora. Não disse mais nada. O outro tava ali, tentando entender o que era aquilo. Como as coisas são absurdas! E por muitos e muitos dias, o velho sentou-se no mesmo banco, mas não encontrou sua sombra. Voltava pra casa cabisbaixo, sentindo-se o mais pobre e desgraçado homem no mundo. Vagou, vagou por muito tempo. E um dia, fez-se um clarão no céu e o levou.

sábado, 1 de outubro de 2011

Um mais um


Eu divido contigo um cantinho escuro, frio, mofado
Divido contigo o cheirinho do pó de café às seis da manhã
Divido contigo a friagem lá fora; a friagem do meu peito 'qui dentro
Divido contigo as coisas que sempre fiz; as coisas do meu jeito

Divido contigo um sorvete, uma andada de bicicleta
Divido contigo o meu espaço; o espaço da vida
Divido contigo o Natal; as nozes e as lembrancinhas 
Divido contigo os dias em que não estarei presente


Divido tudo em dois, não em três, quatro ou cinco


Mas não divido contigo o amor
Porque o amor me apareceu agora